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O QUE YOGA TEM A VER COM ARTE?

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Julia Vaz, novembro 2020.

Arte: Julia Vaz

Como artista, durante todo o meu caminho no yoga eu nunca pude deixar de fazer comparações entre certas sensações, insights e estados internos das práticas yoguicas e do fazer artístico.

 

Minha relação com as práticas de autoconhecimento - ou mindfulness, como são chamadas hoje - começou na faculdade, quando li o livro A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen [1], recomendado na época pela minha terapeuta (assim como muitos livros de filosofia, filmes e outras referências pelas quais sou muito grata até hoje). Neste livro, o autor descreve sua experiência aprendendo a técnica do tiro com arco de um mestre zen budista. O livro acabou sendo parte do meu TCC, que relacionava justamente as práticas meditativas às artísticas, em especial o desenho a nanquim.

 

Assim como o tiro com arco, o Ikebana (arranjos florais) ou o Sumi-e (pintura japonesa com tinta nanquim diluída) são práticas não somente técnicas, mas meditativas.

 

É sempre complexo explicar o que significa experimentar um estado meditativo, mas gosto da analogia do mar, muito usada por algumas escolas de conhecimento védico e semelhantes.

 

A parte mais superficial do mar é cheia de ondas. Algumas vezes, essas ondas são mais fortes, em outros momentos ou locais são ondas mais suaves, mas a superfície está em constante oscilação. Assim é nossa mente no dia-a-dia. Estamos o tempo todo oscilando entre passado e futuro: ora lembrando de algo que não falamos para alguém, ora pensando que não podemos esquecer de dizer algo para outra pessoa; ora nos lembrando de experiências que nos machucaram, ora com medo de nos machucarmos na experiência que estamos vivendo; ora nos arrependendo das escolhas que fizemos, ora confusos com as escolhas que iremos fazer no ano que vem. Essa oscilação provoca conflitos internos e, consequentemente, estresse. O estresse, essencialmente, nada mais é senão nossa reação primitiva de luta ou fuga diante de uma ameaça. Então, diante do estresse constante do cotidiano, estamos sempre ora tentando fugir do passado, ora lutando com o futuro, ou vice-versa.

 

Quanto mais profundamente mergulhamos no mar, mais passivas as oscilações vão se tornando. O silêncio começa a ser mais presente, assim como a sensação de paz e tranquilidade. Assim é o caminhar em direção ao estado meditativo. As ondas cerebrais nunca cessam. O que significa que os pensamentos não cessam. Portanto, meditar não é necessariamente cessar os pensamentos - talvez para algum rishi[2] ou ermitão, mas muito provavelmente não para o ser humano comum que vive em sociedade. Gosto de dizer, então, que o estado meditativo é um segundo tipo de raciocínio, assim como o que acontece no fazer artístico. Uma espécie de automatismo consciente. Como um piloto automático sendo observado passivamente por um piloto humano.

 

“A arte certa”, exclamou o Mestre, “é sem propósito, sem objetivo! Quanto mais obstinadamente você tentar aprender a atirar a flecha somente para atingir o alvo, menos terá sucesso nisto e para mais longe o alvo retrocederá. O que está no seu caminho é que você tem uma vontade muito tenaz. Você acha que o que não fizer você mesmo, não acontecerá.[3]

 

O mestre zen tenta demonstrar assim que o estado meditativo necessita que o Eu pequeno - mais conhecido como Ego -, ou seja, aquele que controla, que manda, o “ditador interno” que crê ser melhor do que o próprio ser, deve ser pacificado. Pensamos que esta voz que atesta o que é “bom” e o que é “ruim”, o que é “certo” do que é “errado” é o que somos. Pensamos que esta voz é o piloto humano, quando na verdade ela é apenas o piloto automático, reproduzindo mecanicamente o que aprendeu sem desfrutar da beleza de estar sobrevoando as nuvens. Ao dizer “você acha que o que não fizer você mesmo não acontecerá”, este ‘você mesmo’ se refere ao Ego. É absolutamente possível fazer uma ação sem que o ego interfira e, na maior parte das vezes, esta será a ação executada com mais presença. O mestre B.K.S. Iyengar fala exatamente disso quando diz que “o yoga é meditação na ação”.

 

E o que isso tudo tem a ver com arte?

 

Como falei anteriormente, este estado meditativo é como um segundo raciocínio, um estado de automatismo em completa consciência e atenção, ou concentração. Aposto que, se você perguntar a qualquer artista se a descrição deste estado se aplica ao seu fazer artístico, receberá uma resposta positiva.

 

Fazer arte ou yoga, contudo, não significa distanciar-se da técnica. Pelo contrário, quanto mais técnicas aprendemos, mais este automatismo consciente flui em harmonia com nosso ser interno, mais a expressão externa se assemelha e se aproxima da alma profunda. É como aprender uma nova língua: quanto mais aprendemos sua gramática, melhor conseguimos nos comunicar. Quanto mais conhecimento de fontes íntegras adquirimos, mais conhecimento interno despertamos. E quanto mais conhecimento interno se desvela, mais clara se torna a nossa expressão externa.

 

Yoga é luz que, uma vez acesa, nunca se apagará. Quanto melhor você praticar, mais brilhante será a chama.[4]

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[1]De Eugen Herrigel, publicado no Brasil pela editora Pensamento.

[2]Rishi (IAST: ṛṣi) é um termo védico para uma pessoa realizada e iluminada. Os rishis compuseram os hinos dos Vedas. A tradição pós-védica do hinduísmo considera os rishis como "grandes iogues" ou "sábios" que, após intensa meditação (tapas), perceberam a verdade suprema e o conhecimento eterno, os quais traduziram em hinos.

[3]A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen.

[3]B.K.S. Iyengar.

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