SIDDHASANA: ALGUMAS LEITURAS
Julia Vaz, julho 2020.
"Siddha significa um ser semidivino, de grande pureza e santidade, que possui faculdades sobrenaturais, chamadas siddhis. Siddha também significa inspirado sábio, vidente ou profeta."
- BKS Iyengar, Luz sobre o Yoga
Siddhasana é considerado por todas as autoridades e textos clássicos conhecidos como um dos ásanas (posturas) mais importantes (e muitas vezes o mais importante), ou essenciais, na prática de Yoga.
Assim como muitos dos ásanas conhecidos mundialmente hoje na cultura do Yoga, há diversas leituras, interpretações e instruções de Siddhasana nos textos clássicos. Aqui, proponho fazer uma leitura comparada de algumas dessas instruções, a partir de 4 textos muito conhecidos e estudados por praticantes e professores do mundo todo.
Hatha Yoga Pradipika (séc. XV)
(Svatmarama)
Neste texto clássico, que é um dos mais conhecidos, reverenciados e difundidos mundialmente pelos praticantes de Yoga, Siddhasana é incluído como uma das 4 posturas essenciais (I.35), e é chamada de "postura perfeita" (I.36), acrescentando-se que deve ser praticada sempre.
Eis a instrução da prática de Siddhasana pelo HYP:
Aplique um calcanhar sob o períneo e coloque o outro pé acima do pênis. Aperte o queixo contra o peito. Mantenha-se reto, controlando seus sentidos e fixe a visão no ponto entre as sobrancelhas. Isso se chama postura perfeita [Siddhasana], que abre os portais da libertação [Moksa].
Percebe-se por este trecho (e por muitos outros) como a prática aqui é destinada a homens, pois tradicionalmente não havia muitas praticantes mulheres. A palavra que designa o períneo, Yoni, representa entretanto, ao mesmo tempo, o ponto entre o órgão sexual e o ânus, não sendo feita distinção de gênero, e o aparelho reprodutor feminino (vagina, útero, vulva).
Gheranda Samhita (séc. XVII)
Com poucas diferenças para as instruções de Siddhasana descritas no HYP, as do Gheranda Samhita assim seguem:
II.7. Siddhasana: pressionando o períneo com o calcanhar posicionado contra ele, descansando o outro tornozelo sobre este ou sobre o pênis, posicionando o queixo no peito, mantendo-se sem movimento, com as indriyas [sentidos] sob controle e olhando fixamente entre as sobrancelhas, esse é chamado siddhasana, que rompe as portas da libertação [Moksa].
Em ambos os casos, há uma ênfase na pressão e estímulo exercidos pelo calcanhar no períneo, área considerada de extrema importância energética. Além disso, também percebe-se a adição de Jalandhara Bandha (selo ou fecho interno que se executa levando o queixo ao peito) em ambas as descrições, o que não é observado em outros dois textos importantes: o Goraksha Shataka [8] e o Shiva Samhita [III, 85].
Luz sobre o Yoga (1966)
(B.K.S. Iyengar)
B.K.S. Iyengar em Siddhasana
Yogacharya B.K.S. Iyengar, com sua "Experiência baseada em pesquisa" e "pesquisa baseada em experiência", desenvolveu a técnica hoje conhecida como Iyengar Yoga. Esta técnica tornou possível às "pessoas comuns" experimentar a sabedoria dos Yoga Sutras de Patanjali.
Iyengar Yoga é para todos e é um modo de vida. O uso de acessórios, desenhados por Iyengar, como blocos de madeira, cintos e cordas, ajuda o praticante a executar qualquer ásana com precisão e segurança.
Em sua mais conhedida publicação, Luz sobre o Yoga, Iyengar antecede as instruções da prática deste ásana discorrendo, entre outros conceitos, sobre a busca pelo estado de turiya dentro do Yoga - descrito nas Upanishads como um quarto estado de consciência além dos conhecidos de vigília, sono e sonho. Fielmente aos textos clássicos, não por acaso Iyengar trata desses assuntos antes de falar sobre Siddhasana, que além de ser considerada uma das mais importantes, é uma postura essencialmente meditativa.
As instruções seguem:
(a) Sente-se no chão, com as pernas estendidas à frente.
(b) Flexione a perna esquerda no joelho. Segure o pé esquerdo com as mãos, coloque o calcanhar próximo ao períneo e descanse a planta do pé esquerdo contra a coxa direita. Agora flexione a perna direita no joelho e coloque o pé direito sobre o tornozelo esquerdo, mantendo o calcanhar direito contra o osso púbico. Coloque a planta do pé direito entre a coxa e a panturrilha da perna esquerda. Não descanse o corpo nos calcanhares. Estique os braços à frente e descanse as costas das mãos sobre os joelhos, para que as palmas das mãos fiquem voltadas para cima. Junte os polegares e os indicadores e mantenha os outros dedos estendidos. Mantenha o posterior do pescoço e a cabeça eretos e a visão retraída, como se estivesse olhando para a ponta do nariz.
(c) Solte os pés.
Asana, Pranayama, Mudra, Bandha (1969)
(Swami Satyananda Saraswati)
Um dos manuais mais utilizados pelo meio do Yoga no mundo todo, Asana, Pranayama, Mudra, Bandha é um guia detalhado e ilustrado, muito prático, especialmente para iniciantes. A primeira edição foi compilada a partir dos ensinamentos diretos do Swami Satyananda Saraswati durante o curso de formação de professores conduzido na Bihar School of Yoga, em Munger, Índia. Desde então, as edições foram revisadas e houve novas adições e notas, incluindo seções que discorrem sobre os chakras (centros de energia do corpo físico) e outros aspectos do corpo sutil.
Neste livro, Siddhasana é traduzido como "postura para o homem realizado" - percebe-se como, mesmo já no século XX, a prática de yoga ainda era predominantemente masculina - e segue instruída da seguinte forma:
Sente-se com as pernas estendidas à frente do corpo.
Flexione a perna direita e traga a sola do pé contra a coxa interna esquerda, com o calcanhar pressionando o períneo (área entre os genitais e o ânus).
Flexione a perna esquerda. Empurre os dedões e a borda externa do pé esquerdo no espaço entre a panturrilha direita e os músculos da coxa. Caso necessário, este espaço pode ser levemente alargado com o auxílio das mãos ou temporariamente ajustando a posição da perna direita.
Coloque o tornozelo esquerdo diretamente sobre o tornozelo direito, de forma que os ossos dos tornozelos se toquem e os calcanhares fiquem um sobre o outro.
Pressione o púbis com o calcanhar esquerdo diretamente sobre os genitais.
Os genitais ficarão, portanto, entre os dois calcanhares.
Caso esta última posição seja muito difícil, simplesmente coloque o calcanhar esquerdo o mais próximo possível do púbis.
Agarre o dedão direito e puxe-o no espaço entre a panturrilha e a coxa esquerdas.
Novamente ajuste o corpo de forma confortável.
Sente-se sobre o calcanhar direito. Este é um aspecto importante de siddhasana. Ajuste o corpo até que esteja confortável e a pressão do calcanhar esteja aplicada firmemente.
As pernas deverão agora estar presas, com os joelhos tocando o chão e o calcanhar esquerdo diretamente sobre o direito.
Mantenha a coluna ereta e sinta como se o corpo estivesse fixo no chão.
Coloque as mãos nos joelhos em jnana, chin ou chinmaya mudra.
Feche os olhos e relaxe todo o corpo.
Sou suspeita para dizer que minha versão preferida do estudo desta postura é a de B.K.S. Iyengar, pois sou estudante de seu método, porém é sempre fundamental conhecer outros estudos e também as origens do que aprendemos nas shalas. Espero que meu modesto svadhyaya tenha contribuído positivamente para o seu. ;)
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Referências:
- Hatha Yoga Pradipika, Svamin Svatmarama. Mantra, 2017. São Paulo, Brasil.
- Essência do Hatha Yoga, A. Souto, Alicia. Phorte, 2000. São Paulo, Brasil.
- Luz Sobre o Yoga, B.K.S Iyengar. Pensamento, 2016. São Paulo, Brasil.
- Asana, Pranayama, Mudra, Bandha. Swami Satyananda Saraswati. Yoga Publications Trust, 2013. Munger, Bihar, Índia.